“Você tem meias brancas?”. Foi com essa pergunta que entendi que deveria me preparar de forma apropriada para encarar uma verdadeira cerimônia do chá. Não que aquelas aulas feitas em inglês, para turistas, sejam experiências fake, mas, sinceramente, o clima de uma cerimônia conduzida para japoneses e/ou entendidos no assunto acaba sendo bem diferente.
Para quem nunca teve nenhum contato com o tradicional ritual, sugiro SIM que comece pelos workshops destinados aos estrangeiros. Antes dessa “cerimônia verdadeira”, tinha tido uma aula dedicada ao assunto na escola de japonês onde estudei em Tóquio e também havia participado de um workshop em Kyoto. Por mais que tenha sido na sala de aula, em meio às cadeiras e mesas, a experiência na escola foi muito mais interessante. Foi lá que entendi o motivo de muitas ações que rolam durante o ritual. Esse de Kyoto, apesar de ser oferecido num lugar lindo, bem tradicional, deixou a desejar um pouco…
Como não tinha meias brancas, meu amigo Mizuaki (aquele que sempre me convida para os rolês mais bacanas no Japão, como esse ou esse) se prontificou a me emprestar um par no dia do evento. Mizuaki vem há anos estudando o que em japonês é chamado de chado ou sado (茶道), “o caminho do chá”, ou também de chanoyu (茶の湯) – disciplina que acabou ficando conhecida como cerimônia do chá. E, em mais um convite irrecusável, me chamou para participar de uma cerimônia completa no espaço onde estuda em Tóquio, a escola Sowaryu, fundada ainda no período Edo, no século XVII.
A cerimônia é muito mais que o preparo e a apreciação do matchá, a variedade de chá verde servida no ritual. Trata-se de uma de uma experiência de completa atenção ao momento em si. É necessário estar presente, imerso, envolvido. Esqueça o whatsapp, o instagram e nem pense em fazer vídeos pros stories. É preciso ESTAR. Em inglês, podemos associá-la ao termo mindfulness.
Além de ser uma experiência praticamente meditativa nesse sentido, podemos apreciar aspectos importantíssimos da cultura japonesa ao longo da cerimônia. Omotenashi, wabisabi, ma, ichi-go-ichi-e… todos esses assuntos que já apareceram aqui no blog estão lá. Ter tido contato com esses conceitos e ideias de antemão foi muito bom para poder apreciá-los durante o evento.
Geralmente, as cerimônias são realizadas em duas versões: uma mais curta, em que os convidados degustam um doce japonês (wagashi) e o chá, e outra mais longa, que chega a durar cerca de 4 horas, já que inclui também uma refeição servida no estilo kaiseki. Nesse tipo de refeição, são servidos diversos pratos delicados em pequenas porções, sempre pensados na harmonia de sabores, texturas e cores. O kaiseki, por si só, já é uma baita experiência para quem está no Japão – imagina então quando ele é oferecido dentro de um outro ritual!
Confesso que estava um pouco tensa e ansiosa para encarar essa experiência. Sendo a única participante estrangeira, não queria fazer feio nesse ritual que envolve muitos protocolos e códigos de conduta, até mesmo para os japoneses. Algumas coisas eu já tinha pesquisado de antemão, mas outras eu acabei aprendendo lá (depois de cometer algumas gafes)!
Aqui vai um pouco do que eu aprendi:
Porque usar meias brancas numa cerimônia do chá?
A cerimônia é conduzida em uma (ou várias) sala(s) em tatami, chamada de chashitsu – que é considerado um espaço sagrado. O cômodo não tem mesas e os utensílios são apoiados no próprio piso. Em sinal de respeito e de higiene, devemos tirar os sapatos e colocar meias brancas antes do início do ritual, geralmente numa sala de espera para onde os convidados são levados logo que chegam na escola. Isso mostra ao teishu (o anfitrião) e aos demais participantes que não estamos levando nenhuma impureza para dentro da sala do chá.
O que vestir para ir a uma cerimônia do chá?
Roupas formais e discretas. Não é necessário ir de kimono – aliás, no meu grupo, com exceção do shokyaku (o convidado principal), ninguém estava com vestimentas tradicionais japonesas. Os homens estavam de terno e gravata e a outra mulher estava com uma sala de comprimento abaixo dos joelhos, e uma blusa clara, sem decotes e com mangas. Aliás, nem pense em ir de shorts ou de saia curta, mesmo que com meia-calça. Além de ser um pouco chamativo, vai ser bem desconfortável passar horas sentada em seiza, posição em que ficamos sentados de joelhos dobrados, de forma com que o bumbum fique em cima dos pés.
É importante não usar nenhum tipo de acessório. Nada de relógio, brinco, colar, anel, pulseira. Durante a cerimônia, os convidados são convidados a apreciar as cerâmicas e utensílios usados pelo anfitrião, separados especialmente para a ocasião. Geralmente, essas peças são antigas, passadas de geração em geração. A última coisa que você vai querer fazer é lascar a xícara feita pelo tataravô do host, não é mesmo?
Estava usando uma correntinha com um pingente pequeno, bem discreto. Mesmo assim, no meio da cerimônia, fui orientada a tirá-lo pois, dependendo do tipo de peça, devemos nos debruçar um pouco para poder observá-la melhor, podendo fazer com que o pingente bata na cerâmica ou no instrumento que temos em mãos.
Para manter a discrição, nada de maquiagem, principalmente batom. Num dado momento, compartilhamos um chawan (a xícara usada para tomar o chá) com os outros convidados. Lembre-se que o foco é na ação do anfitrião e na experiência em si – e não se você tá gata pra sair bem na foto.
Pode parecer um exagero ou rigoroso demais, mas isso tudo já nos mostra uma coisa muito bacana: o cuidado com as coisas e o respeito pelo outro e pelo grupo é fundamental.
O que levar para a cerimônia?
Espera-se que cada convidado leve seu “kit cerimônia”. Mizuaki foi tão atencioso que preparou para mim um kit contendo:
– Sensu (扇子): leque tradicional japonês
Não, você não vai se abanar com o leque. Ele é usado numa função muito especial, que eu só fui reparar ao final do ritual – ou seja, comi bola durante umas 3 horas. Pior é que meu amigo tinha me explicado antes, no caminho, mas na hora não reparei direito em como as pessoas estavam usando o acessório. Em momentos da cerimônia, é de bom tom prestar reverência aos elementos decorativos da sala: o arranjo de flores, o pergaminho pendurado na parede, algum livro ou outros objetos. Lembre-se de que tudo ali foi escolhido cuidadosamente pelo anfitrião para proporcionar esta experiência aos convidados e, portanto, possui um significado especial. Antes de nos curvarmos diante desses elementos, devemos colocar o leque fechado sobre o tatami em frente dos joelhos (considerando que estaremos sentados), entre o nosso corpo e o objeto em si, em sinal de respeito ao sagrado. Seguindo esse mesmo raciocínio, devemos posicionar o leque dessa forma ao cumprimentar o host.
– Kaishi (懐紙): tipo de guardanapo feito de papel japonês
É usado para apoiar o doce, para limpar certos utensílios após o uso e também como guardanapo, se necessário. Recomenda-se levar um punhadinho deles consigo.
– Kuromoji (黒文字): tipo de palito feito em bambu
É usado na hora de comer o doce japonês (wagashi) servido antes do chá. Serve para espetar o doce e também para cortá-lo caso ele seja grande demais para uma bocada só.
– Fukusa (袱紗): lenço de seda em formato quadrado
Geralmente roxo para homens e vermelho ou laranja para mulheres, é usado pelos convidados na hora de apreciar certos utensílios usados pelo host, de forma a proteger a peça.
Esses são só alguns detalhes da cerimônia. Se for para escrever tudo o que aprendi nesse dia, este post levaria horas para ser lido! Para resumir, foi muito além do que eu esperava. Foram quatro horas longe do celular, imersa num mundo à parte – onde a gentileza, o cuidado, a delicadeza e o equilíbrio reinam. Um verdadeiro aprendizado para a alma.