Leia o emocionante relato do engenheiro Jonas Medeiros, que pedalou 1600 quilômetros em viagem que fez pelo arquipélago em 2015

“Quando fiz minha primeira viagem ao Japão em 2011 fiquei encantado com o povo, cultura e belezas do país. Nesta viagem, subi o Fuji com minha filha mais velha, que é descendente de japoneses. De lá, já saí com planos de voltar e fazer algo que me marcasse por toda a vida. Então, depois de muito planejamento, voltei em setembro de 2015 para fazer um roteiro que ia de ponta a ponta, e depois até Okinawa. Parti de Wakkanai, em Hokkaido – na verdade, do Cabo Soya – no dia 27 de setembro de 2015 e cheguei em Kagoshima, extremo sul do país, em 25 de novembro, 66 dias depois. Ao todo, foram 1.600 km de bicicleta, do total de 3.800 km. Tudo exclusivamente sozinho.

O percurso

Em Hokkaido, segui pela costa do Mar do Japão até Rumoi seguindo uma das mais longas estradas em linha reta do Japão, a Ororo Line. Ainda ali, na pequena Haboro, conheci de perto os ventos de um tufão. Fui empurrado durante mais de 20 km quando fiz um desvio e fiquei a favor dele. Fiquei protegido em uma hospedaria chamada Kiriri, onde fui cuidado por uma família durante os três dias de espera. Sou amigo deles até hoje. Foi lá onde comi o melhor kakifurai (ostra empanada frita) da minha vida. Há um neurotransmissor que guarda exatamente este sabor na minha memória até hoje.

Com a família Sakamoto no hostel Kiriri, onde fiquei três noites esperando a passagem de meu primeiro tufão (Foto: Jonas Silvestre Medeiros)

Depois, segui por estradas continente adentro por Asahikawa e Sapporo, duas cidades que adoro pela proximidade com as montanhas e natureza selvagem. Continuei pelas montanhas até o lago Shikotsu e Toya. São regiões lindas no outono com suas folhas avermelhadas. Lá vi e senti o cheiro do primeiro vulcão em atividade do qual me aproximei. Até Hokodate, Hokkaido inteiro foi uma grande aventura. Pedalei o tempo todo sozinho, mas fiz bons amigos com quem guardo amizade até hoje.

A caminho do lago Shikotsu pela montanhas de Hokkaido, depois de cruzar Sapporo

Atravessei o mar até Aomori de balsa e desembarquei por lá bem na estação de colheita das maçãs. Uma lindeza só. Precisei largar a bicicleta no hotel onde estava por vários dias para descer até Kyoto e conhecer as filhas de Mari, que em pouco tempo se tornariam minhas enteadas. Uma emoção seguida de outra. De Aomori segui por Akita e Yamagata. Perto de cidade de Sagata tive vários problemas com a bicicleta que precisou de oficina. Chovia muito e o prazo previsto indicava mais de uma semana de espera. Era dia 30 de outubro e eu ainda tinha muito a percorrer. Decidi deixar a bicicleta em Toyama no ryokan de uma amiga. Segui de trem para os alpes de Nagano e Takayama, e depois viajei por Gifu, Shiga, Hyogo, Hiroshima, Fukuoka, Nagasaki, Kumamoto e finalmente Kagoshima. De lá, segui para Okinawa de balsa. Voltei a Tóquio a tempo de girar pelos lagos do Fuji e fotografá-lo no outono. A viagem durou 88 dias no total.

Monte Fuji em um lindo dia de outono, em dezembro de 2015 (Foto: Jonas Silvestre Medeiros)

O preparo

Ter feito o Caminho de Santiago (860 km) em 2012 foi meu teste para ir ao Japão, principalmente porque fiz sozinho e queria perceber como meu corpo e minha mente reagiriam a uma viagem longa e solitária. Eu percebi que a maior força que temos é a mental. Se você quer realmente algo, pode conseguir. Assim foi comigo. Nunca fui atleta. Sou uma pessoa normal. Pessoas normais podem fazer qualquer coisas desde que se planejem e se dediquem.

A dinâmica da viagem

A maior distância que percorri em um único dia foi de 156 km entre Asahikawa e Sapporo.  A média, no entanto, se situava em torno de 70 a 80 km. Eu pedalava cerca de 2 horas e fazia paradas rápidas de 10 min para comer proteína. No camelback (mochila com depósito de água) levava 1,5 litros de água e 750 ml de isotônico na garrafinha do quadro. Preparava um lanche com oniguiri (bolinho de arroz japonês) e enlatados para o almoço, que não passava de 30 minutos. A rotina mais normal era pedalar entre 7:00 e 16:00 horas. Às vezes me atrasava por causa das paradas para as fotos e várias vezes cheguei nas cidades procurando onde dormir já à noite. Nunca fiz reservas prévias. Atravessei Hokkaido em 18 dias. A previsão era de 13 dias, mas me atrasei por causa de dois tufões, um na costa e outro em Sapporo. Fiquei noites extras quando cheguei nos lagos Shikotsu e Toya também.

A bike

Usei uma Trek com quadro de fibra de carbono (pesa menos de 10 kg) que comprei na Espanha por ocasião do Caminho de Santiago. Treinei muito em aulas de spinning e fazendo trilhas próximas de São Paulo, mas isso tá longe de ser suficiente para suportar viagens longas. Só mesmo na prática para você se acostumar com os dias seguidos de pedal. Uma bicicleta leve ajuda muito. Aliás, todo equipamento profissional ajuda demais e pequenos detalhes podem fazer diferença quando as distâncias são longas e você se aproxima dos limites físicos e mentais.

Na entrada de um dos muitos templos à beira do caminho já em Honshu (Foto: Jonas Silvestre Medeiros)

Equipamentos e suprimentos

Não levei barraca de camping nem equipamentos para cozinhar. Isso alivia muito o peso. Em compensação, exige uma rotina mais intensa, pois é preciso chegar em algum local para dormir. A bike tinha dois alforjes traseiros e uma mochila presa acima do bagageiro. Na frente, no guidão, uma bolsa com mapa, GPS, câmera fotográfica, telefone, kit de reparos e outros itens de acesso rápido. Tinha uma roupa de bike completa (macacão, blusa, luvas, capacete, bandana e bota impermeável de ciclista) que usava todos os dias (eca!). Na bagagem uma calça de trekking, um anorak, um par de meia reserva, três cuecas, três camisetas dry fit, um par de papetes, câmaras de ar e alguns medicamentos. Separei as coisas em três partes: roupas, equipamentos (bike e fotografia) e itens de sobrevivência (saco e lençol de dormir, saco de bivaque, remédios, kit de primeiros socorros, suplementos).

Equipamentos e suprimentos carregados na jornada

Desafios e coisas que eu faria diferente

Na primeira semana meu joelho inflamou devido ao esforço e achei que não conseguiria continuar. Fui salvo pelo tufão que me deixei quieto 3 dias de molho no gelo.  Depois o corpo foi se adaptando e no fim de Hokkaido eu estava muito bem. Quanto mais pedalava, melhor eu ficava.

De diferente, eu sairia uns 10 ou 15 dias mais cedo do mesmo ponto para ganhar mais tempo ainda no outono. A partir de Aomori, seguiria pelo meio do continente, pelas montanhas. No litoral, chove muito. Subir morro acima é muito difícil fisicamente, mas os lagos, as montanhas e o visual compensam. Há mais onsens (banhos de águas termais) também.

Eu usaria pneus mais finos e mais resistentes. Tive vários problemas com pneus que já tinha usado e confiava de outros terrenos. No Japão não se anda na terra, somente asfalto, quase sem acostamento e pega-se muitos resíduos (parafusos, por exemplo) do trânsito de caminhões nas estradas.

Vista do alto de Shirakawago, uma linda vila nos alpes japoneses durante o outono (Foto: Jonas Silvestre Medeiros)

Lugares favoritos

Eu acabei me apaixonando por Hokkaido por vários motivos. Primeiro porque fiz tudo de bike e assim o contato com a natureza é mais intenso. Depois, porque lá é mais selvagem. Um combinação única de pessoas simples, lugares rústicos e comida fantástica. Uma sucessão de paisagens fantásticas. Adorei os lagos e a cidade de Hakodate que tem mar, montanha e história (último samurai que resistiu à era Meiji). Mas eu gostei muito também de Nagasaki. De novo a combinação mar, montanha e história. Mas é difícil um lugar que não tenha gostado. Aomori, Toyama, Hiroshima, Fukuoka, todas elas têm suas atrações.

Histórias especiais

Quando estava nos alpes, fui de Nagano para Matsumoto para conhecer o castelo. Ainda na estação de trem, fui para a fila do ônibus que levava direto para lá. Ao subir no ônibus falei algo em inglês e um homem me respondeu de pronto. Sentamos próximos e depois de alguma conversa percebi que ele era cego. Fomos juntos ao castelo que tinha alguns acessos de escada bem estreitos e íngremes. Eu fiquei ajudando ele o tempo todo e me tornei seu amigo. Passamos o dia juntos. Descobri que ele era professor de matemática e tinha uma sensibilidade incrível. Em vez de descrever o que via no castelo para ele, era ele que me explica o que era cada coisa e seus significados históricos.

Em Mastumoto, onde encontrei o sensei de matemática que guiei pelo castelo da cidade. Ele, deficiente visual, enxergava muito mais que eu que via (Foto: Jonas Silvestre Medeiros)

Também conheci um senhor sobrevivente da bomba de Hiroshima. Ele era um dos HPV – Hiroshima Peace Volunteers. Fiquei o dia todo com ele conhecendo os detalhes do local onde a bomba caiu e a história de sua família, que morreu toda por conta de doenças que surgiram em decorrência da bomba.

Meu guia voluntário e sobrevivente da bomba de Hiroshima (Foto: Jonas Silvestre Medeiros)

Conheci a história de um médico em Nagasaki que ajudou os sobreviventes e acabou morrendo de câncer por causa da radiação. Ele escreveu vários livros sobre como tratar as pessoas e hoje existe um museu em sua homenagem.

Em Okinawa, pedi carona uma vez e a pessoa que me pegou me levou para conhecer alguns locais lindos na ilha. Depois fiquei hospedado em sua casa e até hoje somos amigos.

Em Haboro, Hokkaido, fiquei com uma família que se dedica há mais de 30 anos em receber viajantes de moto e bicicleta. Eles me trataram como um filho durante os dias que fiquei lá abrigado do meu primeiro tufão.

Em Sapporo, conheci uma brasileira descendente de japoneses casada com um norueguês que me convidou a viajar com um grupo de estrangeiros para a península de Shakotan. Lá fiquei na casa de uma senhora que me preparou um jantar fantástico e se tornou minha amiga.

Mas a história mais especial de todas aconteceu quando fui socorrido por um policial quando tive meu pneu traseiro rasgado sem conserto. Estava no meio do nada em uma estrada perto da Sakata, Yamagata. Tive que abandonar a bicicleta e caminhar em busca de ajuda. Encontrei um canil e uma jovem chamou a polícia. Só que veio um policial à paisana, que nem parecia policial. Ele veio em seu carro particular e com roupa civil. Me levou para uma oficina onde ficaram com minha bicicleta. Eu estava todo molhado mesmo com as roupas especiais que trajava e, enquanto me trocava, trouxeram várias frutas para eu comer. Ele aguardou até que eu acertasse tudo sobre a bike e me levou para a estação de trem, onde me esperou almoçar e embarcar. Durante o trajeto, perguntei porque ele estava sem uniforme e sem carro de polícia e ele me disse que estava de folga naquele dia. Que estava na verdade com sua mulher e filho quando viu a mensagem que um ciclista viajante estava com problemas. Ele então foi me ajudar porque percebeu que era a pessoa mais próxima e que chegaria mais rápido do que qualquer outra pessoa. Admirei-o por ter feito isso mesmo em um dia de descanso com a família e fiz este comentário. Ele disse que aquele era o comportamento normal de um japonês e que qualquer outro que estivesse próximo teria feito a mesma coisa. Neste momento eu me emocionei, pois pensei que, se eu fosse ele, provavelmente ficaria na dúvida se faria exatamente a mesma coisa que ele fez por mim.  Senti vergonha, na verdade.

Tem muitas outras histórias que dariam um belo capítulo de livro. Cada cidade, cada parada, cada lugar que fui, encontrei pessoas incríveis. Esta, sem dúvida, é a melhor parte de viajar.

Este senhor comprou os últimos dois últimos sushis de Hida. Eu estava logo atrás dele na fila, quase chorei e ele me vendeu um deles

Dica para quem quer se aventurar

Minha principal dica é dosar o esforço. Pedalar durante três ou quadro dias e descansar um ou dois para seguir. Assim se vai muito mais longe. Mas neste ritmo você precisa de tempo. No caso no Japão, para uma travessia que permita conhecer toda a extensão longitudinal, parando nas principais cidades para conhecer, três meses não são suficientes.”

Jonas Silvestre Medeiros, 54 anos, nascido em João Pessoa/PB, é engenheiro especializado em fachadas de edifícios e diretor técnico da Inovatec Consultores. Gentilmente, Jonas me enviou este relato por e-mail 🙂