Cresci numa casa onde o gohan era a norma. Mas gostava mesmo era do “arroz temperado”: o arroz soltinho que reina nas mesas da maioria dos brasileiros, mas que em casa só fazia aparições esporádicas – portanto, especiais.
E já que a mesa era de brasileiros, jogar o feijão por cima daquele arroz grudento e comê-lo de garfo e faca num prato raso nunca me causou estranheza. Em casa de nikkeis é assim: tempurá vira acompanhamento de bife, shoyu vira molho de frango empanado e hashi é usado para pegar a couve cortada bem fininha.
Apesar de estar presente nas refeições praticamente todos os dias, o gohan sempre ocupou papel de coadjuvante no meu prato. Tanto que quando estive no Japão pela primeira vez, em 2013, confesso que não entendia o fascínio dos amigos gringos pelo arroz japonês, muito menos aqueles programas de tv em que uma bancada de 5 apresentadores se surpreendia com as diferenças entre os grãos provenientes de Kumamoto e aqueles originários de Hokkaido. “É só arroz”, pensava.
Mas por que será que de uns tempos para cá eu tenho AMADO gohan como nunca? Mais ainda se for para saboreá-lo recém-cozido, quentinho, num chawan, a tigela apropriada, usando um par de hashi. Hoje acho estranho usar garfo e faca para comer o arroz grudentinho e prefiro não corromper a unidade dos grãos com o caldinho do feijão. Feijão, agora, só se for com o “arroz temperado” (ou abura gohan, como é chamado em japonês).
Acho que uma das razões para essa mudança foi entender, finalmente, a ligação afetiva que os japoneses têm com arroz. O cineasta Hirokazu Koreeda explica isso muito bem em “Depois da Vida“. No filme, depois que morrem, as pessoas têm que escolher uma única memória para levar para o “além-vida” (sim, a premissa é bem linda e dá margem para histórias singelas e tocantes). Uma senhora escolhe a lembrança de um momento da sua infância em que come um onigiri (bolinho de arroz) feito pela sua mãe, logo após a cidade onde mora ter sido atingida pelo Grande Terremoto. Arroz é isso: carinho e afeto, com um toque familiar.
Hoje em dia, fico muito feliz com uma refeição da qual o gohan faça parte. O teishoku, por exemplo, é uma combinação de porções de comidas bem simples: além do arroz, sempre é servido missoshiru ou alguma outra sopa, algum cozido, tsukemono (conservas) e a atração principal, que pode ser um peixe grelhado, tempurá, sashimi, etc. Para mim, teishoku sem gohan não é a mesma coisa. É ele que traz harmonia e equilíbrio à combinação de sabores, tornando-se a base para melhor apreciarmos o prato principal.
Coadjuvante nunca mais.