Tudo começou quando um amigo fotógrafo se propôs gentilmente a tirar fotos minhas num matsuri, festival tradicional japonês, vestindo uma yukata.
Yukata: tipo de kimono feito em algodão, mais leve e adequado para as festividades de verão no país. Aqui, escolho deliberadamente o artigo feminino para me referir à vestimenta, já que em japonês as palavras não têm gênero e há também quem se refira ao traje como sendo menino.
Não parei para pensar muito, já que o trabalho do Geraldo é lindo e seria incrível ser fotografada por ele. Alguns dias depois da troca de mensagens, lá estava eu indo atrás daquela que seria a minha primeira yukata.
Opa, peraí. Falando desse jeito, até parece que essa decisão foi simples assim. Mas a bem da verdade é que, diferente de muita gente que coloca essa experiência como prioridade no Japão, eu nunca tinha tido vontade de vestir um traje típico e sair passeando por aí, mesmo com o meu intenso envolvimento com a cultura japonesa nesses últimos tempos.
Por que essa falta de interesse?
Numa visão mais pragmática, talvez tenha sido pela falta de oportunidade ou de incentivo. Mas, parando para fazer uma análise psicológica mais profunda (alô Freud, alô Jung), meu sentimento de rejeição deve vir lá de trás, da minha infância e adolescência, época em que me esforçava para não parecer ainda “mais japonesa”.
E aqui entramos numa questão comum a muitos descendentes de asiáticos, em geral. Quanto mais escrevo sobre questões ligadas à identidade nikkei ou asiática, como neste texto, mais percebo o quão comum é esse sentimento que os descendentes têm de desajuste e de negação das origens. Quer saber a real? Queremos fugir dos estereótipos que nossos olhos puxados e nomes diferentes nos impõem.
Precisei amadurecer esse laço com o Japão para me sentir confortável com a ideia de parecer ainda mais japonesa SIM e de reconhecer que isso faz parte da minha identidade. E, olha, valeu a pena passar por esse processo de maturação.
Desde a compra da yukata até o fim de noite fazendo um ritual de senko hanabi (uma espécie de queima de fogos numa escala menorzinha), toda essa experiência foi tão divertida, bonita, simbólica e libertadora, que posso dizer que essa foi uma das coisas mais importantes que fiz no Japão.
Aqui, divido com vocês como foi esse processo.
Comprando a yukata
Foi numa loja especializada em kimono no descolado bairro de Jiyugaoka, um lugar fora do burburinho turístico de Tóquio, do jeito que eu gosto. Os vendedores foram muito atenciosos e ainda enviaram uma cartinha em português depois, para agradecer. As peças que estavam em promoção custavam cerca de 50 dólares. A que gostei obviamente não tinha desconto e foi o dobro (alô Murphy). Mas, por ser um bem que vai durar muito tempo, achei que valia a pena fazer o investimento.
Significado da estampa
Alguns seguidores lá no Instagram me perguntaram sobre o significado da estampa da yukata que escolhi. Fui pesquisar e vi que, o que achava que fossem estrelas ou flores eram, na verdade, folhas de cânhamo (RISOS). A erva tem uma longa tradição com o país e, antes que vocês pensem que o clima aqui é legalize, explico. Fibras de cânhamo são altamente resistentes – ótimas para fazer tecidos, cordas ou papel. Além disso, encontramos a semente de hemp no shichimi togarashi, famoso tempero que mistura sete condimentos. Inclusive, alguns restaurantes usam as sementes como fonte de proteína, como é o caso desse hambúrguer vegano que experimentei em Roppongi, em Tóquio.
Vestindo a yukata
Acho incrível como tudo no Japão acaba se tornando um ritual – preparar um chá, fazer papel, produzir saquê, cozinhar um bom lámen. Com as vestimentas não é diferente. Quando fui me arrumar sozinha, separei duas horas do meu dia só para me vestir (afinal, tinha que ter uma boa margem pros erros de iniciante). Coloquei um som, dei play no tutorial que encontrei e fui seguindo o passo a passo. Ou, pelo menos, tentando. Os gestos requerem precisão e, ao mesmo tempo, delicadeza. Não dá pra fazer de qualquer jeito, senão se corre o risco de voltar para casa carregando o obi, faixa principal, todo desfeito nas mãos – que foi o que aconteceu comigo nessa primeira vez. Vestir-se ou vestir alguém com um traje desses é um ofício especializado – que diga a Mari Uechi, que me vestiu com kimono em workshop conduzido pela estilista Isabel Mascaro, no meu primeiro contato com os trajes típicos japoneses.
Acompanhando a coreografia de Bon Odori
Participar da dança Bon Odori, em que os japoneses homenageiam seus ancestrais, foi o auge da experiência com yukata. No Bon Matsuri de Shimokitazawa, em Tóquio, duas queridas amigas e eu nos jogamos na dança ao redor do yagura, o palco circular onde rola a coreografia. Mesmo com a coordenação atrapalhada, sentir o movimento dos panos esvoaçantes da yukata em sintonia com a comunhão intensa de percussão, canto, ritmo corporal e, por que não, suor, me fez pensar no significado daquilo tudo. Olhava para o palco e para as pessoas ao redor para saber de quem eu poderia copiar a dança. Inventava truques para decorar os passos. Invariavelmente, me embananava toda. Riámos e nos divertíamos.
Mas, mais do que um momento de diversão simplesmente dita, ali foi meu momento de comunhão com meus antepassados. E, antes de tudo, de me sentir grata pela minha ancestralidade.