Depois de ter escrito este post, não esperava que o Ma fosse aparecer tantas outras vezes no meu caminho e se tornar uma das ideias japonesas que mais me fascinam. Ma é uma das leituras do ideograma , representado pelo sol (日) no meio de um portal (門). De uma forma simples e objetiva, Ma pode ser entendido como intervalo de tempo ou espaço entre dois elementos. Mas seu significado pode se tornar bastante complexo, até mesmo para os japoneses.

Este trabalho do músico Dudu Tsuda me trouxe uma nova visão sobre o kanji: “a reminiscência de som que antecede o silêncio”. Oi? Isso me deixou um pouco confusa porque, num pensamento dualista – aquele que reina no Ocidente – ou existe o som ou existe o silêncio. O que seria, então, esse “som residual”? O Ma, nesse momento, começou a me intrigar, mas admito que nunca fui ativamente atrás de explicações. Elas foram surgindo naturalmente.

Teve esse documentário do cineasta francês Damien Faure, depois um papo com um amigo mestrando em moda e, finalmente, cheguei na indicação de leitura dos trabalhos da Michiko Okano. Que alegria! Nascida no Japão e residente no Brasil desde sua infância, a pesquisadora fala sobre o Ma de um jeito muito esclarecedor. Foram seus artigos que me levaram a entender que essa ideia de espaço-intervalo pode estar não só na música, mas também nas artes plásticas, ilustrações, fotografia, cinema, arquitetura… E vai além disso.

Tomando a arquitetura como exemplo, o Ma pode ser encontrado nas construções tradicionais como casas de chá, jardins e templos. Em suas pesquisas, Michiko Okano explica a função do caminho entre a entrada de um santuário xintoísta, sempre demarcada por um portal, o torii, e o santuário em si. Enquanto percorre esse caminho, o visitante vai se preparando espiritualmente para adentrar o espaço sagrado. Vai deixando para trás as questões mundanas para estar totalmente imerso na experiência que está por vir. Ou seja, ao mesmo tempo em que indica um espaço físico entre dois elementos (portal e santuário), esse percurso também representa um tempo de preparo necessário da mente e da alma.

Torii que indica a entrada do Nezu Jinja, santuário xintoísta em Tóquio (Foto: Piti Koshimura / Peach no Japão)

Tendo isso mais claro na cabeça, fiquei feliz quando reencontrei o Ma na exposição sobre o arquiteto Tadao Ando que rolou em Tóquio no ano passado. Não por acaso, havia um ambiente da mostra dedicada a essa noção de espaço-intervalo presente em seus projetos. Ando reforça a importância dos espaços vazios, que, eventualmente, acabam desempenhando uma função.

A partir daí, não foi uma surpresa reconhecer o Ma na fala de Sou Fujimoto durante a palestra que rolou na Japan House, na abertura da exposição “Futuros do Futuro” – que eu não cansava de visitar sempre que estava ali pela Avenida Paulista. Entre as obras comentadas pelo arquiteto, estava a “N House”, construída em Oita, no Japão.

N House, projeto de Sou Fujimoto (imagens: ArchDaily)

As paredes e teto são compostas por essas 3 camadas. A camada externa tem esses recortes que permitem a passagem de vento, de chuva, de ondas de calor, etc. Já os recortes da camada intermediária são fechados por vidro, dando proteção aos ambientes internos.

Essa área que fica entre essas duas camadas poderia ser considerada uma varanda da casa já que os moradores podem ir ali, tomar um solzinho, sentir uma brisa no rosto e cuidar das plantas. É, portanto, uma área externa – o lado de fora. Mas se pensarmos que também é uma área que está dentro do limite dos muros da casa, ela pode ser considerada uma área interna – dentro. O Ma está aí. Trata-se de uma área de transição entre dentro e fora, podendo ser, ao mesmo tempo, dentro E fora. E é isso que me encanta nessa ideia: permitir a coexistência dos opostos num mesmo espaço ou intervalo.

Para mim, ele representa um vazio ou um intervalo necessário. Ou ambos. É um momento de reflexão, compreensão e preparação. Ele pode estar nas pausas das conversas e no nosso jeito de encarar os hiatos da vida. Recorrendo a Michiko Okano mais uma vez:

Quando vou ao Japão, me dizem que sou brasileira, e quando estou no Brasil falam que sou japonesa. Então esse espaço intermediário que se situa Brasil e Japão é onde eu fico (…) É nesse espaço intermediário que eu vivo, ou seja, não estou nem lá, nem cá. Mas eu faço parte dos dois, o Ma me dá essa possibilidade”.