“Prefiro ‘Virgens Suicidas'” – disse a um professor da faculdade que queria saber o que eu tinha achado de ‘Lost In Translation’, na época de seu lançamento. Honestamente, não entendia o fuzuê na mídia em torno do segundo filme da Sofia Coppola – gostava mais do seu longa de estreia. Quinze anos depois, surge o desafio: falar em público sobre a obra que se passa em Tóquio, tendo como base as minhas pesquisas sobre o Japão e o tema central do evento: “a cumplicidade na solidão”.
O talk mediado por Juliana Sabbag, que também contou com as participações super especiais de Natália Garcia e Karina Oliani, antecederia a exibição do filme no terraço maravilhoso do CCSP e faria parte da programação do Hello Cinema, promovido pela Motorola. Teria cadeiras de praia, mantinhas caso fizesse frio, pipoca e algodão-doce. E uma conversa que poderia contribuir para aprofundar a experiência do público.
Animada com a proposta, revi o segundo longa da carreira de Sofia Coppola. Sabia que esse gap de quinze anos, dos quais há pelo menos cinco venho pesquisando sobre o Japão, me faria vê-lo com outro olhar. Como diz o provérbio ichi-go-ichi-e: cada encontro é único e irreproduzível. E meu encontro com “Encontros e Desencontros” seria dessa vez muito diferente.
O filme mostra a aproximação entre os personagens de Scarlett Johansson e Bill Murray num hotel em Tóquio. Charlotte, uma garota recém-formada e recém-casada, vai ao Japão para acompanhar seu marido fotógrafo, mas passa boa parte dos dias sozinha. E Bob, um ator de Hollywood que teve seu auge nos anos 80, está lá para gravar uma campanha publicitária milionária de um famoso whisky japonês.
Nessa segunda análise do filme, tentei deixar de lado o incômodo que senti na primeira vez em relação aos personagens japoneses, quase caricatos: a prostituta que diz “lip” ao invés de “rip” e aquela eterna piada dos Ls e Rs (ZZZzzzzz), o apresentador de tv que não poupa gestos efusivos e gritos estridentes, os membros da Yakuza que resolvem invocar com um dos amigos de Charlotte e dão início a uma perseguição pelas ruelas de Tóquio. Isso sem contar a cena do gigantesco Bill Murray no elevador, no meio de japoneses extremamente baixos, e a do banho, em que ele não consegue ajustar a altura do chuveiro em pleno Park Hyatt, um hotel de luxo no centro de Tóquio.
Entendo que muitos podem ficar enfurecidos com esse tipo de representação, mas, vendo-o novamente, percebi que o filme tem seus méritos.
Uma das constatações mais encantadoras que surgiram por conta desse tempo de estudos sobre o Japão é que, para mim, a obra diz muito sobre o Ma (間), a noção japonesa que se refere aos espaços, vazios e intervalos. Tudo que é não-dito na comunicação estabelecida entre Charlotte e Bob tem muito mais significado que os infinitos “I love you” declamados pelo marido dela. Os longos olhares em silêncio e os toques físicos delicados e pontuais entre os dois acabam comunicando algo muito mais profundo que as conversas que Bob tenta engatar com sua esposa por telefone. Os vazios têm função.
Acho bastante simbólico que essa conexão entre os dois se dê no Japão, um país onde o não-dito tem um papel fundamental na comunicação. Para os japoneses, a assertividade na fala pode ser vista como um traço de rispidez ou até mesmo como um quê de arrogância. É muito comum o uso de expressões que deixam no ar uma afirmação, como frases que traduziríamos como: “pode ser que seja assim”, “não tenho certeza, mas…”, “é o que eu penso, mas pode não ser isso”. Japoneses evitam conflitos e relativizar o discurso é uma das formas que buscam para manter a harmonia do grupo. Como um “não” pode soar extremamente rude, eles encontram diversas formas para expressar algo negativo. Por isso, entender o que se passa na cabeça dos japoneses requer compreender essas entrelinhas: as reticências, a expressão facial e corporal, as nuances das frases, a escolha das palavras e os silêncios.
A amiga não percebe que Charlotte estava questionando seu casamento e sua vida quando recebe um telefonema. Pensa que é só um papinho sobre a viagem. Também por telefone, a esposa não entende que a demora de Bob para responder sobre a cor do revestimento de sua escrivaninha não é causada pela dúvida ao ver a diversidade da paleta, mas pelo fato de que ele simplesmente não liga para isso.
Mantendo essa comunicação evasiva entre si, Charlotte e Bob conseguem se conectar e se entender. Não vou dar muitos exemplos para não dar spoilers, mas reparem nos momentos em que o toque físico acontece. Quando isso acontece por iniciativa de um deles, a outra parte não se sente desconfortável e tampouco expressa surpresa. É natural, algo que o momento pede. É um pequeno sinal de uma cumplicidade imensa. É aquele “eu sei, te entendo”. E é mérito da diretora e dos atores transparecer isso para quem assiste.
O final não poderia ser mais apropriado. O que será que Bob cochicha no ouvido de Charlotte? Não sei. E também não importa. A sacada de Sofia Coppola de deixar esse trecho incompreensível para o espectador reforça o que Kakuzo Okakura fala sobre o vazio em “O Livro do Chá” – obra que recomendo fortemente a todos que quiserem entender a mentalidade, a arte e a estética japonesa.
“A utilidade de um jarro de água está no vazio onde a água pode ser posta, não na forma do jarro ou no material de que ele é feito. O vácuo é todo poderoso porque tudo contém.”
O cochicho inaudível de Bob pode ter múltiplas interpretações – significados que talvez as palavras não possam carregar. Fica a critério de cada um.