É real e oficial: estamos todos obcecados por organização graças à Marie Kondo. Conhecida como “guru da arrumação”, a japonesa de 34 anos nascida em Tóquio virou uma febre mundial depois da estreia da série “Ordem na Casa” (Tidying Up) na Netflix, no início do mês. Além de sermos impactados com a sua fofura em nível astronômico, acredito que boa parte do fascínio exercido pelo seu trabalho venha da relação peculiar que ela estabelece com coisas em geral (roupas, cacarecos, móveis, casa).

Mas o que isso tem a ver com o xintoísmo, a filosofia que rege a espiritualidade dos japoneses?

Antes de chegar nesse ponto, falemos mais de Marie Kondo. Ela passou a ganhar fama fora do Japão com o lançamento do livro “A Mágica da Arrumação” (2014), que soma mais de OITO milhões de cópias vendidas no mundo. Não é uma surpresa que a série em que bota ordem no lar de famílias norte-americanas ganhou uma legião de fãs sedentos por mais ordem e felicidade em suas vidas. Tanto nos seus livros quanto no programa, a organizadora de ambientes nos ensina como trazer mais alegria ao nosso dia-a-dia por meio da arrumação de onde moramos ou trabalhamos, seguindo uma metodologia de sua autoria: KonMari.

Image result for a mágica da arrumação marie
Best seller mundial: Marie Kondo explica passo a passo seu método KonMari

Segundo esse método, uma etapa essencial do processo de arrumação é o descarte: devemos manter apenas objetos que nos trazem alegria. Fofíssimo. E mais fofo ainda é como devemos jogar fora aquilo que já não nos faz sorrir: agradecemos cada peça de roupa ou cada cacareco e, cuidadosamente, os separamos para o descarte. Nada de jogar no chão ou de amarrotar tudo antes de arremessar num saco de lixo. Devemos gratidão àquele objeto que cumpriu seu papel em nossas vidas, pelo menos por um tempo.

E para os itens que vão continuar na nossa rotina, Marie Kondo recomenda: “valorize o que você tem”. Ao chegar em casa, ela tem o costume de agradecer roupas e acessórios usados durante o dia. Em japonês, existe a expressão otsukaresama deshita, que não tem uma tradução direta para o português, mas que demonstra o reconhecimento e valorização do esforço e trabalho alheio. Seria uma espécie de “bom trabalho”. Vale falar para o colega do escritório no final do expediente e também para um amigo que acabou de participar de uma competição importante, por exemplo. Marie Kondo usa a expressão para se dirigir às suas meias, que enfrentam árduas jornadas sendo pisadas e surradas por horas a fio. Segundo ela: “quando tratamos nossos pertences com gratidão, eles duram mais e se tornam mais vibrantes”.

Outro momento que surpreende no ritual da guru é quando visita um novo cliente: Marie Kondo se ajoelha no centro da casa para se apresentar mentalmente e tenta estabelecer um vínculo para entender como ela gostaria de ser organizada. Ela, sim, a casa.

Reconhecer que as coisas entendem tais recados e podem retribuir essa atenção para além do mero desempenho de suas funcionalidades é algo que pode ser explicado por um dos aspectos essenciais do xintoísmo, filosofia (também classificada como religião) que rege muitas particularidades do modo de viver e pensar japonês.

Segundo o xintoísmo, a todos seres, animados ou inanimados, podemos atribuir uma alma, um espírito. Isso configura a característica animista dessa filosofia – animismo vem do latim animus: alma, vida – e explica MUITO do método KonMari.

Vemos essa valorização das coisas, animais e elementos da natureza em muitas outras referências japonesas. Quem aí assistiu “Sabor da Vida“, da cineasta Naomi Kawase, lançado em 2015? O filme foca na história de uma senhora adorável interpretada pela fabulosa Kirin Kiki, que faleceu há poucos meses. No longa, sua receita de an (pasta adocicada de feijão azuki), é inigualável – todos querem o bolinho dorayaki recheado com seu creme de feijão. O segredo do sabor é revelado no decorrer do filme: no preparo longo, dedicado e carinhoso, a senhora chega até a conversar com os feijões.

Em “Sabor da Vida” Kirin Kiki interpreta uma senhora que usa um ingrediente especial para cozinhar os feijões: amor

O caráter animista também dá origem a muitas lendas da mitologia japonesa. Uma criatura do imaginário popular do país é o Kara-Kasa, também chamado de Karakasa Obake, um monstro em formato de guarda-chuva, que pula e assusta as pessoas. Reza a lenda que, depois de 99 anos de existência, um guarda-chuva ressentido pelo abandono e descuido de seus donos tornou-se esse monstrengo meio desajeitado que pula para assustar os moradores da casa e do entorno.

O monstrengo Kara-Kasa na versão do autor de mangás Shigeru Mizuki

Se está difícil de pensar em falar “bom trabalho” para seus sapatos, de conversar com os ingredientes da comida ou de visualizar um ataque de uma sombrinha, vamos pensar em fluxos de energia. As coisas são resultados de uma cadeia de processos que envolvem elementos da natureza, mão de obra humana, transporte, energia etc. Em cada etapa, o produto final vai pegando um pouco da energia trocada. Se passa por um operário de fábrica que está de saco cheio de fazer seu trabalho, a energia é uma. Se passa pelas mãos de uma artesã que ama o que faz, o resultado é diferente. Essa experiência feita por uma professora brasileira com base na pesquisa de um cientista japonês mostra que palavras de amor e ódio causam efeitos totalmente diferentes a um pote de arroz cozido.

Com isso em mente, dá para entender porque um dos capítulos de “A Magia da Arrumação” se chama “Arrumando suas coisas para ter uma vida sensacional”. Mantendo por perto só o que nos traz alegria, fica mais fácil de ter uma vida mais feliz.

Outros posts sobre xintoísmo: “Saquê e a conexão com os deuses“, “Osoji: a faxina que dá boas-vindas ao ano novo no Japão” e “Por que os japoneses amarram cordas em árvores antigas?