Depois de um ataque cardíaco que quase tirou sua vida há cerca de quatro meses, Mike Kato passou a ter um entendimento diferente da palavra japonesa 必死 (hisshi). Normalmente, quando seguida pela partícula に (ni), ela é traduzida como “desesperadamente”, podendo ser usada numa frase como “preciso arrumar um novo emprego desesperadamente”. Porém, analisando os dois ideogramas que compõem a palavra, temos um significado mais profundo. O primeiro, 必, transmite a ideia de “inevitável” ou “invariável”. O segundo, 死, é o kanji de morte. Ou seja, como a morte é algo inevitável, surge a noção de urgência em tomar uma atitude ou colocar algo em prática.

Mike, de 56 anos, nasceu em Los Angeles e mora há mais de três décadas no Japão. Buscando uma maior aproximação com a terra onde nasceram seus avós, decidiu vir ao país quando tinha 24 anos, logo depois da morte de sua mãe. E, aqui, surge uma dúvida no meu papel como repórter: como definir o campo de atuação de Mike? Depois de três horas de entrevista, que acabou virando uma troca emocional, cheia de revelações e sentimentos, percebi que seria muito difícil colocá-lo numa caixinha de “consultor”, “tradutor”, “assessor” ou “jornalista”, já que essas palavras não conseguiriam qualificar tudo o que Mike faz ou já fez na vida. Acho que “professor” – ou “sensei” em japonês – é a que eu mais gosto. Como um grande estudioso do idioma, Mike me explicou um significado da palavra 先生 (sensei) do qual eu nunca tinha parado para pensar a respeito. Os dois ideogramas juntos indicam: “aquele que nasceu antes”. 


Descobrimos muitas coisas em comum! Neto de japoneses, Mike veio morar no Japão para aprender japonês e se aproximar de seus ancestrais

Criado por pais agricultores, Mike sempre se interessou por sustentabilidade, alimentação orgânica, trabalhos artesanais, viagens, esportes e se sente muito bem na natureza. Porém, na época em que seu coração falhou, estava trabalhando para cumprir prazos impossíveis e produzindo materiais que não necessariamente gostaria de produzir, preocupado sempre se conseguiria pagar as contas e bancar a criação de seus dois filhos adolescentes – mês após mês, ano após ano. Sobreviver ao ataque cardíaco foi um sinal para Mike: sentiu que deveria espalhar uma mensagem que trouxesse inspiração e que também servisse de aviso.

Nas viagens que fez pelo interior do Japão, percebeu que o discurso das pessoas (invariavelmente, idosas) é sempre o mesmo: “o interior é muito bom, aqui a vida é muito boa”. Mas esses mesmos moradores falam com alívio do neto ou da sobrinha que partiu para morar em Tóquio, Osaka ou outras grandes cidades. “Lá, eles vão ter uma vida melhor”. Mike viu que apesar de toda a riqueza de conhecimento que circula nas pequenas cidades das áreas rurais do Japão, não existe algo que ele considera fundamental para que essa riqueza se perpetue: esperança.

No interior, com as pessoas de mais idade, Mike acredita que podemos aprender melhores formas de viver: com mais equilíbrio e saúde, respeitando a natureza, ou nos desenvolvendo e nos aperfeiçoando em técnicas que trazem paz de espírito. Se tem uma coisa que aprendi nesses anos em que venho pesquisando sobre o Japão é que os trabalhos artesanais envolvem um nível de desenvolvimento espiritual intenso. Além de ser um processo apuradíssimo que exige tempo e muita dedicação, acredita-se que parte da alma do artesão é transferida para sua obra. Trata-se, praticamente, de um ritual religioso.

Em seu processo de recuperação, Mike começou a formular um projeto: fazer um documentário em que percorrerá 1000 quilômetros de bicicleta pelo Japão para apresentar o modo de viver das pequenas comunidades. Ele acredita que no interior do país podemos encontrar as ferramentas para vivermos melhor, junto daqueles que nasceram antes. O projeto está agora em fase de captação de recursos, via crowdfunding.

Ele não precisou nem falar muito para ganhar o meu apoio – bastou falar o nome do projeto. “Kokoro no Kintsugi” não tem uma tradução direta, mas poderia ser algo como “conserto do coração com kintsugi” ou “conserto da alma com kintsugi”. Kintsugi é a técnica de reparar artesanatos quebrados, principalmente cerâmicas, com uma cola à base de ouro (tem variação com prata e platina também). Isso torna as rachaduras mais visíveis, ressaltando a história daquela peça, tornando-a única e ainda mais especial. Para quem já acompanha o blog há um tempo, já ouviu falar dessa arte neste post sobre wabisabi – a filosofia de apreciar a beleza das coisas incompletas, imperfeitas e impermanentes.

Kokoro é uma palavra comumente traduzida por “coração”. No escopo da língua japonesa, porém, pode ser muito mais abrangente. Usando nosso vocabulário, também englobaria alma, espírito, mente. Essa é uma palavra tão interessante para mim que também foi assunto desse post.

Ao pedalar 1000 quilômetros pelo interior do Japão, a proposta não é apenas de “consertar” o coração de Mike. Face às mazelas do mundo atual, que infelizmente encaramos como sendo normais, a ideia é que o documentário “Kokoro no Kintsugi” se transforme numa jornada de cura, trazendo mais esperança e inspirações para vivermos uma vida melhor.

Vejam o relato do Mike:

Que tal ajudarmos a tirar esse super projeto do papel? É só contribuir com qualquer valor pelo Kickstarter: https://www.kickstarter.com/projects/lifecyclejp/life-cycle-kokoro-no-kintsugi-0